domingo, 6 de março de 2011

Outro Carnaval



Mais um carnaval. E outra páscoa, e outro natal. Ilusões que crias para que os dias não sejam tão iguais, incessantemente o mesmo tom. Buscas fingir que não sabe que o hoje é uma repetição do ontem que é um espelho do amanhã. Não abre os olhos para não ver a verdade crua que te assombra a alma. Segues guiado tão somente pelo instinto de sobreviver. Viver, isso que nem sabes o que é.
Nutre-se do inferno, suga do paraíso, retorna ao limbo. Outra hora, mesmo anoitecer. Cantas músicas vazias, inala o cheiro do sexo, faz o que o instante lhe permite. E partes, assim, pela estrada. Lobo e caçador. Espera que os anos venham lhe salvar de si mesmo.  
Outro carnaval.

Sombra de mim


De repente, amorteci
Amorteceram alma, corpo e coração
Pernas e braços já não sentem
Apenas seguem
No peito vazio já não ouço mais as vozes que me atormentavam
O hoje é sempre meu último dia
Os olhos não se deslumbram, a alma não se ilude
A boca cansada silencia
Não sei quem sou, e não quero descobrir
Não quero mais a luta
Cansei-me das perguntas
Tão somente caminho
Pequenos passos que me levam...
Não sei o que me guia
E não quero descobrir
Apenas abrir e fechar os olhos
Até que se esvaziem completamente
Não sei da minha alma
Não sinto mais dor
Vida que escorre pelos dedos...
Suporto
E sobrevivo
Sou uma sombra de mim
Daquela que um dia fui e sequer cheguei a descobrir

...



Álvaro de Campos



É preciso chorar,
o que também é difícil...
Expulsar de mim o que me tira o sono
(e o que me leva a fome).
É preciso digerir a cidade (me disseram).
Sim, é preciso amar
a fumaça noturna das chaminés,
a algazarra da misturadora de cimento
nas ruas que não dormem.

Mas, a bordo da noite, fantasma,
Queria o poço mais escuro e esquecido,
silêncio e escuridão
(eu não acredito na luz elétrica).
Não, eu não queria falar das coisas que eu sei.
Queria me ocupar da trovoada,
porque anuncia a chuva,
e do horário das marés,
que delas depende a nossa fome.
Queria te falar, meu companheiro,
das coisas que eu consegui retirar da areia,
e ouvir também as tuas descobertas.
O meu cabelo será sempre, no vento,
macio como depois do amor.

sábado, 5 de março de 2011

A Arte do Amor




II

Uma sobrancelha arcada abrigava pura ira, o singelo silêncio, uma cadeia. Um sorriso se traduzia em súplica, Um olhar era entrega e vassalagem. Esse foi, ontem, o nosso amor. Contempla hoje as ruínas em que jaz. Tu continuas a meus pés, buscando perdão, e eu não me desenredo de minha indignação.



III
O amor além de nós passou...
Romperam-se os laços de nossa afeição. Esgotou-se a atenção com que nos nutrimos, e como perfeitos estranhos, nos saudamos. E ainda que eu recorde os dias passados, não sei por que razão meu coração não se parte em centenas de pedaços.

A Arte do Amor,
de Amaru (Índia, séc. VII)

Passei



     Perdi.Perdes-te.

Por tanto ter amado, te perdi
Por ter me perdido dentro de ti, quis me encontrar
Quando me vi, perdes-te minha hora
Calou-se quando quis teu grito
Bradou quanto pedi silêncio
Amanheceu quando precisei anoitecer.
Romperam-se laços
Olhos se entristeceram
Histórias foram esquecidas
Passei. Não me viste sair.